“Perguntar-me-ão: qual é a sua teoria? Responderei nenhuma. E é isto que me dá medo: gostariam de saber qual é a minha doutrina, a fé que é preciso abraçar ao longo deste livro.” (O demônio da teoria, Antoine Compagnon, 2010, p. 23)

Como é possível falar de uma teoria do Coaching? É esta a pergunta que revisito em minha prática profissional, sempre com um olhar crítico contagiado pela Literatura, minha formação de base. Semelhante a esta, o Coaching é transdisciplinar e convida a uma atitude interrogativa, ao questionamento de pressupostos, ao passeio por um campo repleto de armadilhas feitas de palavras.

Armadilhas porque palavras podem conduzir a categorias, e o problema das categorias é criar estereótipos, daí o perigo e o medo mencionado na epígrafe. Estereótipos, por seu caráter fixo, encerram discussões, generalizam, padronizam, contam histórias incompletas[2]. Declarar hoje “ser coach” é desenhar alguns contornos para si próprio e para os olhares do mundo sobre si. A problemática se agrava quando se adota como “sobrenome”, complemento da profissão, o selo da escola de formação e/ou quando se estabelece a necessidade de um nicho de mercado: contorno do contorno do contorno cujas premissas raramente são questionadas. Retorna-se, assim, às disputas escolares e universitárias semelhantes às de times de futebol: debates dicotômicos de melhor versus pior que incluem métodos, técnicas e os personagens envolvidos.

Minha intenção diante deste cenário é abrir espaço para discutir pontos de partida em comum, apelar à teoria como quem analisa a prática do Coaching, almejando uma consciência crítica do Coaching. Faço uso da definição de teoria da literatura de Compagnon para refletir sobre uma possível teoria do Coaching: “Não se trata, pois, de fornecer receitas. A teoria não é o método, a técnica, o mexerico. Ao contrário, o objetivo é tornar-se desconfiado de todas as receitas, de desfazer-se delas pela reflexão.” (Compagnon, 2010, p. 24).

Se há teoria quando as premissas dos discursos ditos senso comum são questionadas, façamos um exercício teórico sobre algumas noções fundamentais, que unem os profissionais sob o “guarda-chuva” do Coaching. Muito já se discutiu sobre “o que é”, a natureza do Coaching enquanto metodologia transdisciplinar ainda em processo de estabelecer sua credibilidade (Souza, 2013, p. 41; Stober; Grant, 2006). Disciplinas que incluem bases teóricas de diversas áreas: Filosofia, Linguística, Educação, Psicologia, Comunicação, Antropologia, Administração e Esportes (Brock, 2008), sobre as quais não é possível se debruçar, muito menos com profundidade, em poucas horas de formação. Como mencionei antes, aqui discuto a partir da perspectiva humanista tendo como principal base teórica a Literatura (com ramificações pelas áreas da Educação, da Filosofia, da Linguística e da Comunicação). Entendo o coaching como uma metodologia voltada ao desenvolvimento humano em suas diferentes expressões privadas e públicas: pessoal (individual – íntima; plural – relacionamentos), profissional (individual; plural – em times, organizações, sociedade etc.). Antes de mudar, transformar o indivíduo ou o grupo, acredito que o Coaching promove a humanização destes. Isso porque os encontros ou sessões de Coaching, como os entendo e pratico, não se prestam apenas à aquisição de conhecimentos e competências, mas à expansão da consciência, da percepção de mundo interior e exterior, ou seja, a uma experiência de ser humano com foco em uma questão específica, explorando dimensões discursivas, emocionais, psicológicas para resultar em ação(ões) no mundo. Nesse sentido, se o Coaching só se estabelece na relação entre seres humanos, denominados coach e coachee, penso que um dos questionamentos importantes para uma teoria do Coaching seria a reflexão em torno do conceito de ser humano. Para isso, recorro a Humberto Maturana, que propõe olhar para a dinâmica da especificidade desse ser como organismo vivo diferenciado pela capacidade de reflexão e pela linguagem que promove uma experiência do viver tipicamente humana. Ele afirma que:

Para entender o ser vivo, o que temos que encarar é o que faz, o que constrói. Eu dizia: “Qual é a tarefa, ou o propósito da mosca?” Mosquear, ser mosca. O interessante é que esta resposta coloca a caracterização do ser vivo no ser vivo, não a coloca fora. Porque esse “mosquear” não é mosquear aos outros, é mosquear, ser mosca. Estar na dinâmica de ser mosca. E o gato? Gatejar, gatinhar. E o ser humano? Ser humano. (Maturana, 1999, p. 41, apud Souza, 2013, p. 18)

Desse modo, cabe ao ser humano um modo de vida diverso do dos demais animais, pois inclui a linguagem humana, que permite o conversar com o outro e a reflexão sobre o próprio pensar. Se concordamos que o mundo ocidental entrou no séc. XX numa crise existencial, na qual os seres humanos passaram a questionar a própria identidade e pressupostos como o sentido da vida, reconhecemos que vivenciamos uma transformação histórica radical de como compreendemos o fenômeno humano. Nesse sentido, é importante para o/a coach ter um posicionamento sobre sua visão de ser humano, o que certamente pode direcionar melhor sua abordagem e a escolha de técnicas no trabalho de parceria com o/a coachee. Nesse ponto, pode-se relembrar a célebre citação junguiana: “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”, que convida primeiro à reflexão sobre o que se entende por alma humana. Não entrarei na definição do psicoterapeuta, mas parto dela para expor minha matriz de interpretação do fenômeno humano e, com isso, como fenômeno biológico e linguístico.

Desde a tradição filosófica grega, compreendem-se os seres humanos como racionais, ou seja, considera-se a capacidade de pensar, a razão, como a base do ser. Essa visão é reforçada no mundo moderno pela filosofia de Descartes (“penso, logo existo”), que indica o pensamento como forma de se conhecer o ser humano. O pensamento cartesiano está presente ainda hoje em nosso discurso contemporâneo que preza pela lógica, pelo automatismo concordo-discordo, causa-consequência, pelo caminho estruturado do ponto A ao ponto B pouco abrangente que vemos postulados em várias metodologias de Coaching. Não se trata, entretanto, de uma postura equivocada ou ilegítima, mas que, por sua solidez, não inclui uma das principais características da contemporaneidade: a instabilidade/mudança.

Hoje em dia, a mudança se transformou num aspecto permanente da vida. Nada permanece igual por muito tempo. De fato, a predominância do “ser” está sendo novamente (e em circunstâncias muito diferentes) substituída pela do “devir”. (Echeverría, 2003, p. 18).

Diante da contemporânea predominância do “tornar-se”, o Coaching emerge como uma solução  muitas vezes aplicada como um “remédio contraditório”. Remédio para “curar” o indivíduo do obscurantismo e contribuir para sua autonomia, livre pensar e responsabilidade (poder curativo também atribuído à Literatura no Iluminismo e, mais tarde, reforçado no Romantismo); contraditório[3], pois pode intoxicar, tornando-se doutrina, isto é, um caminho certo para a mudança e quebra de crenças limitantes pode se tornar ele mesmo uma crença.

Assim, o Coaching se insere no contexto da instabilidade e intranquilidade conceitual, ou seja, da complexidade. Enquanto nas ciências o desconhecido é um espaço que abre possibilidades de descobertas, no Coaching este mesmo espaço pode ser um território desconfortável, posto que insere a dúvida no contexto de um mercado que exige resultados mensurados e rápidos:

tudo o que era supostamente sólido, nas teorias anteriores, com certeza agora fraterniza numa coisa: a dúvida. (Não há requerimento de uma paternidade, um saber-padrão, uma teoria que legitime em última instância: os saberes fraternizam.) A interrogação acolhe, a resposta fecha. (Holanda, 2011, p. 11).

É no campo interrogativo e complexo da contemporaneidade que o Coaching se insere. Vou tentar me explicar numa visita breve a esses conceitos.

Contemporâneo no sentido de permitir relações temporais, exercícios do olhar do/a coach e do/a coachee para o tempo vivido, não vivido e o desejado, para algo que transforma o tempo cronológico[4] – um dos sintomas da urgência de mudança demandada do/a coachee quando busca um/uma coach. Resumo a experiência de um processo de Coaching como o exame de focalização de uma questão específica que conduz à exploração do que é vivido, percebido (racional e emocionalmente) e não vivido (seja por um indivíduo, seja um grupo), com a finalidade de encontrar e traçar rotas de ação possíveis e congruentes para apoiar tomadas de decisão.

Complexo[5], pois o/a coach tem como material principal de seu trabalho o pensamento de seres multidimensionais (simultaneamente físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais), cujo núcleo é a incompletude e a incerteza. Na prática profissional, o/a coach carrega alguns ou todos esses aspectos em seu pano de fundo (tanto de si quanto do/a coachee) ao mesmo tempo que articula questionamentos relacionados à demanda específica trazida pelo/a coachee. Devo dizer que hoje meu cenário mental principal como coach focaliza mais os aspectos linguísticos, pois tenho como base as premissas da ontologia da linguagem, logo, interpreto: a) os seres humanos como seres linguísticos; b) a capacidade geradora da linguagem; c) que os seres humanos são capazes de criar a si mesmos na e pela linguagem (Echeverría, 2003, p. 20).

Interrogativo, pois se considero o Coaching como uma arte de conversas qualificadas, estruturadas de acordo com uma metodologia com vistas a ações no mundo, tanto sua teoria quanto sua prática devem ser questionadas para possibilitar não só a construção de sua credibilidade, mas o seu aprimoramento contínuo. Contudo, também penso que para delimitarmos um certo contorno, a especificidade da prática do Coaching, não há lugar para todo e qualquer  tipo de demanda por parte do/a coachee nem para todo tipo de questão por parte do/a coach. Segundo Stober (2006), uma das principais diferenças entre psicoterapia e coaching é o objetivo do processo: a primeira teria como foco ajudar os clientes a terem uma vida mais funcional, enquanto o segundo apoiaria o movimento de uma vida funcional para uma vida mais plena. Nesse sentido, entendo que como especialista da estrutura psíquica humana, o psicólogo/psicoterapeuta atua no campo interrogativo de questões de origem, do “quem sou” do/a cliente, analisando sintomas que são especialidade do profissional e buscando “por quês” para chegar a diagnósticos e soluções. Já o/a coach apoiaria a jornada do/a coachee por um campo interrogativo em torno de questões específicas relacionadas ao seu “quem quero ser”, sendo especialidade do/a coach o processo, a metodologia de Coaching em si, enquanto o/a cliente é especialista no conteúdo de sua própria experiência. Nesse sentido, as perguntas feitas no processo de Coaching são destinadas à/ao coachee decidir o que acredita ser bom para ele/a e, para isso, ele/a precisa estar em condições de tomar decisões próprias, por meio da ampliação da consciência, da autorresponsabilidade e do aprendizado. Assim, essas duas áreas podem se tocar no campo teórico, mas delimitam fronteiras no campo prático, diferenciam-se metodologicamente.

A atitude do/a coach não pode ser ingênua, pois o coaching pede uma atitude analítica diante do mundo. Pedindo licença para me apropriar da frase de Compagnon sobre teoria da Literatura neste ponto, diria: “A teoria do Coaching é uma aprendizagem da não ingenuidade.” (Compagnon, 2010, p. 23). Acredito que uma teoria de Coaching possível seja criada a partir deste convite a não ingenuidade, ao questionamento, repensar as bases teóricas para compor uma metodologia e um olhar que não sejam apenas inovadores (no sentido de produzir o novo), mas sim disruptivos (a fim de transformar paradigmas, interromper o seguimento normal de um processo). Se há uma transformação possível e útil produzida pelo Coaching, creio que seja esta.

 

Artigo originalmente publicado em mar/2018 na Revista Coaching Brasil, ed. 58, p. 22-25, no dossiê Responsabilidade.

Referências bibliográficas
ADICHIE, C. N. O perigo de uma única história. TEDGlobal, 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br>. Acesso em: 12 jan. 2018.

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009.

BROCK, V. G. The secret history of coaching. Disponível em: <http://www.vikkibrock.com/wp-content/uploads/2010/11/emcc-2010-secret-of-coaching-history-paper-brock.pdf>. Acesso em 5 fev. 2018.

COMPAGNON, A. Literatura para quê? Trad. Laura Taddei Brandini. Belo Horizonte: UFMG, 2009.

______. O demônio da teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 2010.

ECHEVERRÍA, R. Ontología del Lenguaje. Santiago: J. C. Sáez Editor, 2003.

HOLANDA, L. Rumos Literatura, palco giratório da crítica literária. In: Deslocamentos críticos. São Paulo: Laboratório online de crítica literária, núcleo audiovisual, Itaú Cultural: Babel, 2011. p. 8-15.

MORIN, E. Ciência com consciência. 2. ed. Rio de Janeiro: Berhand, 1998.

SOUZA, A. M. O coaching na atuação do profissional da informação. 189f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

STOBER, D. R. Coaching from the Humanistic Perspective. in: Stober, D. R.; Grant, A. M. (ed). Evidence based Coaching Handbook. Hoboken: John Wiley & Sons, 2006.

[2] Sobre isso, lembro da palestra da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, no TED Talk, que fala sobre a real ameaça de ter apenas um ponto de vista. Ela afirma que “A única história cria estereótipos. E o problema com estereótipos não é que eles sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem uma história tornar-se a única história.”

[3] “Mas todo remédio pode envenenar: ou ele cura, ou intoxica, ou então cura intoxicando, tal como o ‘remédio no mal’ do belo título de Jean Starobinski. Fica-se doente de literatura como Madame Bovary ou des Essentes. Se a literatura liberta da religião, ela mesma se torna um ópio, isto é, uma religião de substituição, segundo a visão marxista da ideologia, pois tal é a ambivalência de todo substitutivo.” (Compagnon, 2009, p. 36)

[4] Estou me apoiando no conceito de contemporaneidade de Giorgio Agamben, que sugere: “Compreendam bem que o compromisso que está em questão na contemporaneidade não tem lugar simplesmente no tempo cronológico: é, no tempo cronológico, algo que urge dentro deste e que o transforma. E essa urgência é a intempestividade, o anacronismo que nos permite apreender o nosso tempo na forma de um ‘muito cedo’ que é, também, um ‘muito tarde’, de um ‘já’ que é, também um ‘ainda não’. E, do mesmo modo, reconhecer nas trevas do presente a luz que, sem nunca poder nos alcançar, está perenamente em viagem até nós.” (Agamben, 2010, p. 65-6).

[5] Sobre esse tema, estou me remetendo ao pesquisador e “arquiteto da complexidade”, Edgar Morin: “Ora, o problema da complexidade não é o de estar completo, mas sim do incompleto do conhecimento. Num sentido, o pensamento complexo tenta ter em linha de conta aquilo de que se desembaraçam, excluindo, os tipos mutiladores de pensamento a que chamo simplificadores e, portanto, ela luta não contra o incompleto, mas sim contra a mutilação. […] De fato, a aspiração à complexidade tende para o conhecimento multidimensional. Não se trata de dar todas as informações sobre um fenômeno estudado, mas de respeitar as suas diversas dimensões; assim, como acabo de dizer, não devemos esquecer que o homem é um ser biosociocultural e que os fenômenos sociais são, simultaneamente, econômicos, culturais, psicológicos, etc. Dito isto, o pensamento complexo, não deixando de aspirar à multidimensionalidade, comporta no seu cerne um princípio de incompleto e de incerteza.” (Morin, 1998, p. 138).