De tempos em tempos sou aconselhada a ser mais dura, a “engrossar a casca”, porque nesta empresa, nesta cidade, neste país, neste planeta, neste grupo, neste projeto, …, “só os fortes sobrevivem”, “precisa botar o pau na mesa” (coisa que eu não tenho), “você não vai conseguir x, y, z, se não se impor, se não rebater argumentos, se não interromper a fala, se não mostrar a que veio”.

Eu ouço essas vozes que expressam olhares alheios e sinto, primeiro, que tem algo errado comigo e que deve ter alguma forma de consertar isso; segundo, uma dúvida latente, um “será mesmo?” – desconfiança de mim, do outro e dessa força bruta que parece ser o que funciona. Eu acredito que há lugar para essa força agressiva aparecer e ser útil, mas não consigo ainda enxergá-la como recurso eficaz nos contextos em que a comunicação e o relacionamento com o outro estão em jogo.

Por isso, eu quero defender a delicadeza como força.

Diferentemente de nossa cultura ocidental, que privilegia a agressividade e a razão lógica em detrimento de uma postura mais pacífica e intuitiva, geralmente tachada de ‘fraqueza’, muitas culturas orientais valorizam a delicadeza. No taoísmo, por exemplo, ela é representada pela força yin (feminino, noturno, escuro, frio, princípio passivo, absorção). Outra referência à sabedoria chinesa é o Livro das mutações, uma das obras mais antigas da humanidade, que traz o trigrama da Suavidade, um dos oito símbolos que representam o que se considerava a base das tendências de movimento. Os símbolos do I Ching não tratam da representação das coisas, tal como estamos habituados (ex. nossa bandeira representa nosso país), mas sugere características de movimento, o olhar para o que flui. A Suavidade (Sun) simboliza o atributo penetrante do vento ou da madeira em suas raízes, ou seja, não representa o vento ou a madeira em si, mas sua característica imperceptível, força que atua de forma gradual, sutil, mas com efeitos mais duradouros e completos.

A força da constância é de ordem diversa da ação agressiva, repentina. Sua demora pode conduzir a alguns impasses, como: disciplina decidida vs. indecisão complacente. O processo delicado de decisão demanda paciência, observação, tempo e, sobretudo, firmeza. Ah, e não é porque é delicado que não envolve dor…

Posso, sem armas, revoltar-me? – a pergunta de Drummond que convive comigo desde a primeira vez que li “A flor e a náusea” nos idos do Ensino Médio. Essa dúvida foi ganhando novos contornos com a mudança de minhas próprias queixas e demandas, com a jornada pela ontologia da linguagem e aprendizagem na prática no Território Appana, mas encontrou morada no conceito de Ativismo delicado, que conheci em março numa vivência do Instituto Noetá.

Uma forma de ativismo que convida a observar o que é resultado do olhar singular e do olhar coletivo, a refletir sobre a qualidade da observação do que acontece. Uma de suas questões-chave é o que muda quando o que vemos muda? Naquela vivência, eu estava angustiada com minha “decisão disciplinada” (ou seria minha “complacente indecisão” procrastinando a mudança, a cisão?) de pedir demissão de uma empresa dentro de alguns meses. Estava “decidida” já há meses antes do curso de que este seria o movimento deste ano, mas evitava o rompimento, o conflito – algo em mim ainda não enxergava todas as peças que me fariam encerrar esse capítulo com a clareza da imagem completa do quebra-cabeças.

Naquele dia 17 de março, aquele grupo me ajudou a olhar não a situação real, mas seu avesso. Enquanto ouvia uma das participantes do curso citando Bethânia (“o mais importante do bordado é o avesso, é o avesso/ o mais importante em mim é o que não conheço…”), dentro de mim, o que tantas vezes meus olhos leram virou sentimento: uma flor nasceu na rua!

E a flor não era eu, era a decisão. Semente plantada há anos, regada em silêncio, escondida para evitar preocupações, para evitar julgamentos, para evitar reprovação, para evitar… a mudança que eu queria ver.

(na lembrança então tornada sentimento, os versos:
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor
.
e nos ouvidos, a canção: o que de mim aparece é o que dentro de mim Deus tece.)

Quando finalmente enxerguei o verso das peças do meu quebra-cabeças, notei que a imagem da conclusão daquele ciclo já estava formada, apesar de a frente ainda aparentar falhas. A força da delicadeza, sutilmente, tomou conta de todos os meus sentidos e não havia mais como adiar a ação.

Munida dessas “armas”, naquela semana, pedi demissão.

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

É por isso que hoje defendo a delicadeza como força e como valor. É com esse olhar e com essa qualidade de agir que desejo seguir criando, mantendo e liberando elos.