por Fernanda Tavares e Carolina Messias

No primeiro plano, a voz de C. e F. No segundo, o som de “Pra ver a voz”.

O motivo: sentir a nossa voz mais potente na escrita do que na fala. A crença:  investigar a voz pela escrita, que é mais clara e confortável para nós talvez mostre possibilidades para equilibrar as duas formas de expressão.

C.: Meu primeiro impulso após a escolha do tema “voz” foi iniciar pesquisa, ou seja, buscar outras vozes para então me colocar. Minha rebeldia foi não fazer isso. Afinal, só vou ter outras respostas se enveredar por um processo incomum para mim. Tomando a rota alternativa, começo pela minha própria voz (ainda que escrita). O método de ler opiniões alheias antes de me posicionar é o mesmo que pratico na expressão verbal: tenho a tendência à escuta, à ponderação e estruturação de uma fala interna para então comunicar em voz (não muito) alta minha opinião. Ao longo dos anos, reforcei o aprendizado de que o que tinha a dizer não era relevante, ou era óbvio, ou repetia o que alguém já havia dito.

F.: Sempre fui uma criança introvertida e tímida. Me lembro bem que quando queria revelar algum sentimento para minha mãe, fosse uma declaração de amor ou um pedido de desculpas, escrevia um bilhete. Não era difícil escrever o que sentia, mas era difícil falar. Coincidência ou não, minha mãe me ensinou a ler e escrever, então acho que sabia que para ela a mensagem por escrito não teria menor valor do que pela fala. Mais que isso, minha mãe me apresentou esse lindo meio de expressão que é a escrita.

C.: Lembro da sensação de ter escrito a primeira palavra na vida: agua, sem acento. Rabiscava no papel e pedia a confirmação da minha mãe se era uma palavra. Eu tinha que conseguir uma palavra minha! Imitava as letras do que via escrito nos outdoors (tipo Mappin – revelando a idade rsrsrs), mas sabia que era cópia, então não dava valor. Quando consegui escrever “agua” sem ler em outro lugar, foi incrível. Diferente do que possa parecer, não fui uma criança tímida. Pelo contrário, gostava de ser porta-voz da classe, de me candidatar para os papéis nas peças da escola, era meio ‘aparecida’. Gostava muito de escrever e tenho o caderno com as primeiras historinhas até hoje, com as ilustrações feitas pela minha irmã.

Na adolescência, minei ao máximo a qualidade da minha fala, foram anos de silêncio externo e tagarelice interna – uma tensão que não encontrava meios de se expressar além da dedicação em horas e horas de estudos.

F.: Eu me lembro de espaços de conforto na quietude… Convivi muito intensamente com minha avó materna. Que alegria estarmos só eu e ela todos os finais de semana, só nós duas. Aquela relação e aquele espaço tinham uma qualidade de silêncio que eu, como introvertida e irmã mais velha de outros dois irmãos, valorizava fortemente. O ritmo das coisas também era outro no reino da minha avó, o tempo de fazer o bolo, o tempo de as violetas tomarem sol (mas não muito), o tempo das frutas amadurecerem no quintal. Aquela era praticamente uma dimensão paralela que eu podia visitar todas as semanas sem nunca sentir que o silêncio era um impedimento à expressão, convivência e interação.

Mais recentemente percebi que essa intimidade no silêncio eu também compartilhava com meu pai. Minha mãe às vezes reclamava que ele parecia não estar em casa. Eu ouvia essa observação e imaginava que eu provavelmente gerava a mesma sensação nas pessoas que conviviam comigo porque também sou muito amiga da escuta e do silêncio. Quando meu pai morreu e a ausência nos fez a todos sentir que a presença silenciosa é muito diferente da ausência e que, portanto, o silêncio da presença é completamente diferente do silêncio da ausência, um portal se abriu. Meu pai me ensinou naquele momento que a minha presença silenciosa também faz a diferença, pelo menos entre os que me conhecem e me amam.

C.: Leio você e penso o quanto o silêncio abre e fecha espaços. Minha mãe sempre foi mais silenciosa e sempre senti que, com isso, ela garantia uma qualidade de escuta. Quando morava com meus pais, ela foi meu espaço de diálogo mais genuíno. Já meu pai (sorrio aqui pensando)… quando penso no meu pai ouço automaticamente sua risada estrondosa característica. Fala alto, é barulhento e conta piada logo às 5h da manhã. Eu agradeço por tê-los por perto, presentes no silêncio e no barulho. Também penso aqui na diferença de silêncio na presença e na ausência. Não é só a morte física que silencia, há outros “adeuses” que damos que fecham espaços de diálogo, alguns acontecem com o desgaste do tempo, outros por desencanto…

F.: Fato é que não navegamos apenas em nosso ambiente familiar ou, mais amplamente, em ambientes familiares. E foi o trabalho, a experiência profissional, que inicialmente me desafiou a ser também uma presença que fala. O primeiro emprego, como professora, já tinha por si só uma natureza que demandava a expressão verbal pela oralidade. E os empregos seguintes não foram diferentes, a demanda por me expressar pela fala só aumentou ao longo dos anos. Ganhou contornos de liderança e influência e tornou-se cada vez mais fundamental para o meu ser e fazer profissional.

C.: A demanda da expressão verbal pra mim veio dos grupos que frequentei, antes do fazer profissional. Nos anos de graduação, pós e até hoje, me envolvo em grupos que possam me ajudar a desenvolver meu pensamento crítico e autônomo, que eu sinto ser meu ponto fraco. De novo, nesses grupos, mais ouço do que falo – acho que sei menos ou que sei mais do que quem está ali. O não saber, a falta de intimidade e a desconfiança de mim e do outro me levam a valorizar a escuta em detrimento da fala.

F.: Sigo acreditando na força e importância do lugar do silêncio e também do lugar da escuta e ainda acho que são meus lugares de maior conforto. Mas ao longo do tempo fui me encontrando também num lugar de fala, tomando mais riscos, entrando em diálogo, entrando em conflito… Percebi, então, que o receio do julgamento e do conflito me impediam de falar mais, não era apenas uma questão de valorização da escuta e do silêncio. Ao mesmo tempo, fui olhando pra mim mesma com olhos mais generosos e também percebendo que o que eu tinha a dizer poderia sim gerar interesse no outro e contribuir para “boas conversas”. Finalmente, percebi também que o calar, como tão popular e frequentemente se diz, é sim boa parte das vezes compreendido como consentimento e fui me dando conta que sem querer “consentia” em coisas que me feriam. Tinha chegado o momento de dar um salto porque a necessidade interna de me manifestar para o mundo superou em intensidade quaisquer receios ou dificuldades.

C.: Sinto meu espaço de fala mais qualificado na escrita porque:

  • ninguém pode me interromper sem meu consentimento;
  • ninguém me vê escrevendo, apagando, reelaborando, voltando atrás numa opinião, buscando a palavra que eu acho que se encaixa melhor…;
  • as pessoas julgam após a ideia estar consolidada e com uma estrutura que já passou no meu crivo;
  • dificilmente vou escrever algo com o objetivo de “agradar e pertencer ao grupo” – o que geralmente acontece na minha fala;
  • tenho o tempo de elaboração que considero necessário para expor uma opinião que não considere leviana.

“Leviana” (e seus significados) sempre foi uma palavra que abominei para mim, mas que, por outro lado, atribuía/atribuo a outros que falam “o que dá na telha”, se posicionam sem muitos argumentos a não ser o próprio. A escolha de calar, de ser a última a falar num grupo carrega no mesmo balaio: medo, inveja, esperança e também uma certa arrogância. Hoje sinto que começo a me movimentar para a escolha do falar… Veremos!

F.: A necessidade interna de me manifestar para o mundo sempre havia estado ali comigo, não sem razão sempre adorei estudar línguas. Não podia ser uma coincidência. Além disso, certamente não foi uma aleatoriedade me encontrar com a cantoterapia ao longo dessa caminhada. Fui começando a observar que alguns sons eram fáceis de produzir e outros muito difíceis, ambas as descobertas igualmente reveladoras. Fui exercitando notas cada vez mais agudas e num mesmo exercício precisando “subir” e igualmente “descer”. Tenho praticado cantar com outra pessoa numa dança de primeira e segundo voz, inicialmente dificílima para mim porque eu acabava espelhando a outra voz (vícios de uma pessoa “escutadeira” por natureza?). Notei que mesmo sem ter nunca estudado música, de forma intuitiva, acompanho acordes, percebo notas mais altas ou mais baixas e há dias em que soo mais ou menos afinada mesmo para meus próprios ouvidos.

A cantoterapia tem me levado a olhar simbólica e poeticamente para a voz, que funciona de forma similar a uma impressão digital, é única.

Agora sim
os mares te inundarão
verás enfim
com olhos do teu coração
além do teu caminho

Canta, canta só
Só pra ver tua voz vibrando em mim.

(Continua)

Notas de rodapé:

F.: A expressão pela oralidade vem despertando insights diferentes, ainda que não mais importantes que a expressão pela escrita. Curioso, entretanto, me dar conta de que na mesma medida em que tenho intensificado o falar tenho me perdido do escrever… Aí uma amiga bate à porta e convida para a escrita a quatro mãos. Parceria que espero só esteja começando porque não me deixa esquecer que sou um ser que para estar no mundo carece da prática cotidiana do ler, ouvir, falar e escrever.

C.: Pensar a comunicação escrita e como damos contornos a ela para chamá-la de nossa já é uma questão presente para mim há alguns anos, mas só este ano encontrou a questão da voz (da comunicação verbal), depois de uma vivência e de uma conversa com F. Ao mesmo tempo que pensamos juntas, escrevemos e conversamos sobre a voz, surgiu um convite para exercitar mais minha escrita afetiva e reflexiva em outros grupos. A escrita vem ganhando novas formas pra mim: exercício de singularidade do olhar e da voz, exercício de empatia no diálogo.