{Onde cabe a minha voz?} Para ir além do gesto de levantar timidamente o dedo no meio de muitas vozes, de debates importantes, entreabrir os lábios, sentir o deserto na boca e, mesmo quando ninguém me impede de falar, só sentir um ar rarefeito entrar e nenhuma palavra sair. Engolir a própria voz, pra mim, é diferente de calar – talvez seja o que vem antes do silêncio – mas a qualidade desse silêncio de voz autorreprimida não é a da indiferença, da tranquilidade ou da decisão bem digesta. A voz da azia na boca do estômago ecoa os conteúdos mal digeridos, queimando por dentro. Para cuidar desse refluxo feito de suco de palavras próprias e de muitas outras ouvidas e lidas nesses tempos, preciso de tempo, de retorno ao meu lugar de fala, de escolher e distribuir conteúdos em pequenas quantidades, ainda que nada leves, por várias leituras, sem pressa. Preciso (todos precisamos) também de escuta aberta e acolhedora para fortalecer a estruturas musculares internas. Nos últimos tempos, e especialmente nessa semana, tem sido salutar encontrar ouvidos e vozes que me lembram de que todo lugar de fala é relevante para pensar questões de desigualdade e hierarquias… Lembrar que não é possível abandonar um lugar de fala, porque sempre partimos de um, mas que é fundamental refletir sobre ele, problematizá-lo e agir com responsabilidade a partir dele, reconhecendo de quem é o papel autoral e de quem é o papel de protagonista em cada ocasião. .
Nestes tempos de vozes indigestas (tanto pela dureza – verdades difíceis de engolir – quanto pela adstringência – que parecem comprimir nosso pensar/sentir/agir) me reconecto com a pergunta de onde cabe minha voz. Pois é também nesse lugar amargo que encontrei/encontro recursos para cuidar de outras vozes autorais até aqui. A afonia e esse refluxo da minha própria voz no mundo me movem a seguir refletindo sobre que linguagem(ns) e modos de atuar posso aprender e adotar para cultivar menos ódio e intolerância, a fim de que opressões e injustiças raciais, de classe, de gênero e tantas outras encontrem cada vez menos formas de existência e expressão.