Escolher, recortar, colar, combinar… basta uma tesoura sem ponta e uma cola branca para começar a reconhecer, reproduzir e criar o mundo. Incluir nosso próprio traço com lápis ou canetinha na colagem é marcar o papel com algo novo que vemos além ou entre os recortes com imagens semi-prontas e avançar apesar da possibilidade de uma composição imperfeita. Vejo hoje nessas brincadeiras com papel uma forma de jogar com imperfeições: um risco indevido de caneta sobre uma figura imaculada; um corte longe ou ultrapassando a margem esperada, num descontorno esquisito; uma dobra inconveniente que nossa mão carimba e não dá pra disfarçar o vinco depois de feito uma primeira vez; uma tentativa inútil de apagar com borracha um lápis de cor que acaba formando um borrão ou deixando o rastro do risco no papel; e a cola que, líquida, carece de espera pra secar e pede um cálculo de volume instintivo: se falta, deixa pontas soltas; se sobra, molha enrugando a parte colada ou deixa escapar pelas margens do recorte e suja os dedos, formando uma nova camadinha de pele sobre as nossas digitais.
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Imaginação, seleção, combinação, materialidade, frustração, criação do novo (a partir do que já existe), ler, escrever… todas artes que nascem das brincadeiras com papel. A voz autoral que se expressa por essas práticas do papel é mote para muitos escritores do século passado (e até hoje), via reescritura, citação, pastiche (imitação de estilo), paródia, colagem… Uma voz que entende que não é simplesmente inspirada por algo que está fora dela; mas que naturalmente vai se construindo a partir do que a afeta: ora se reconhecendo, ora se desconhecendo, ora se recompondo.
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Lembro de partilhar desta inveja de criança que o escritor Antoine Compagnon descreve no começo do seu livro sobre a arte da citação: “Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro.” Agora com tesoura mais precisa para contornar, cola mais definitiva e anos de prática na arte do papel (leitura e escrita), que expressões têm saído de nossas brincadeiras atuais de recorta e cola?
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Brincar com sua criatividade e imaginação é caminho para expressar seu olhar único e sua autoria.
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E pra quem quer conhecer alguns escritores que usaram dessas brincadeiras para escrever suas obras, convido a ler o dossiê n. 6 da Revista Criação e Crítica (2011) sobre o tema Brincar de Escrever: bit.ly/brincardeescrever
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